Ser ou não ser português, eis a questão!

Ser ou não ser português, eis a questão!

Por Pedro Bacelar de Vasconcelos, Deputado e Professor de Direito Constitucional

1. O nascimento de um ser humano é uma bênção para o lugar onde acontece. Qualquer lugar. Eu nasci no Porto. Não falava português nem qualquer outra língua.

Desconhecia o Código Penal, ignorava a existência do Velho Testamento, as façanhas praticadas por Afonso Henriques, toda a épica camoniana, a lírica de Antero e até a prosa mais recente de Garrett ou Aquilino. Não sabia o nome dos meus pais nem o número da porta da casa onde nasci. Nem sequer reconhecia o meu próprio nome. E, apesar de tudo, foi-me atribuída uma “cédula” que atestava a nacionalidade portuguesa! Um recém-nascido é uma dádiva: são os olhos humanos que fazem da Terra – e do Universo em que se move – uma coisa valiosa. Quem quer que sejam os pais, o primeiro dever do Estado ou de qualquer pessoa decente é prestar os cuidados requeridos ao ser humano indefeso que ali nasceu.

2. Por isso, não são fáceis de entender os inúmeros artifícios jurídicos e requisitos burocráticos que impõem procedimentos labirínticos e transformam a aquisição da nacionalidade num verdadeiro ritual iniciático, ignorando os inevitáveis transtornos, a desamparada angústia, o desespero de quantos se acham abandonados pelo caminho. A Assembleia da República deliberou na semana passada proceder a uma nova revisão da lei da nacionalidade, sendo certo que a intenção prevalecente dos autores dos projetos que serão agora debatidos na especialidade vai claramente no sentido da simplificação e do reforço do princípio do “ius soli” – que valoriza o critério do território – em detrimento do critério do “ius sanguinis” que privilegia a pertença à tribo, a etnicidade, os laços de parentesco.

3. Com exceção da ala mais à direita das forças políticas que obtiveram representação parlamentar – a saber: a Iniciativa Liberal, o Chega e o CDS-PP -, a grande maioria dos deputados parece estar sensibilizada para a necessidade de procurar resposta satisfatória para as situações mais aberrantes, como é o caso das crianças que nasceram em Portugal entre a Revolução de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da primeira lei da nacionalidade, em 1981, cuja situação nunca foi regularizada por inexistência da documentação exigida. Trata-se de colmatar lacunas que persistem no quadro legal da aquisição da nacionalidade, motivo de flagrantes injustiças que incompreensivelmente se perpetuaram na nossa ordem jurídica e a que se espera, agora, pôr termo. Excluindo circunstâncias óbvias – por exemplo, o nascimento em território nacional do filho de um casal de turistas a banhos no Algarve -, não é fácil fundamentar outras restrições à aquisição da nacionalidade.

Artigo de Opinião publicado no Jornal de Notícias a 19 de dezembro de 2019

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