As Pandemias: nós e os outros
Por Alexandre Quintalhia, Professor Jubilado e Deputado na Assembleia da República
Só por si, a palavra Pandemia assusta. A nossa sensação de vulnerabilidade e de falta de controle dispara. Contextualizar o momento que vivemos é importante.
As bactérias, fungos e vírus que estão no nosso corpo perfazem quase 40% das células e mais de 90% da informação genética que transportamos. É de facto espantoso que as pandemias não tenham surgido com muito mais frequência.
Nós somos “ecossistemas ambulantes”: transportamos triliões de células de bactérias e fungos e um número incalculável dos mais variados vírus. Felizmente, são, na sua grande maioria, indispensáveis para o normal funcionamento do nosso corpo (e até do nosso cérebro)! Hoje sabemos que esta espantosa colaboração virtuosa entre tantos “inquilinos” é o resultado de milénios de adaptação, para que a presença de uns fosse reconhecida como essencial para a sobrevivência de todos.
É a evolução a funcionar!
Infelizmente, volta e meia, ou aparece um novo “inquilino” perigoso, ou o sistema deixa de funcionar. As razões para que tal aconteça podem ser ambientais ou genéticas. As ambientais resultam da exposição a novos vetores, promovida pela nossa mobilidade entre continentes, pelas alterações climáticas, ou até pelo contacto com outras espécies animais. As genéticas podem ter a ver com diferentes mutações não só das células humanas que afetam os nossos sistemas de defesa, como da dos próprios “inquilinos” que se tornam indesejados. Frequentemente as razões são até difíceis de categorizar.
Quando tal acontece, o resultado pode originar uma Pandemia.
As pandemias do último milénio estão bem documentadas. Entre as que mataram dezenas de milhões de seres humanos incluem-se a Peste Negra (séc. 14, até 200M†), a Varíola (séc. 16, até 56M†), a Gripe Espanhola (séc. 20, até 50M†) e o VIH/SIDA (já com perto de 35M†).
As menos mortíferas (raramente atingindo 1M†), nos últimos dois séculos, foram a Cólera, a Febre Amarela, a Gripe Asiática, a SARS, a MERS, o Ébola, a Gripe Suína e agora o COVID-19.
Enquanto não surgem novos fármacos, incluindo vacinas, as intervenções no controle das pandemias continuarão a ser essencialmente não-farmacológicas. Ou seja, a implementação de mecanismos que bloqueiem ao máximo as cadeias de infeção. Várias formas de prevenção de contágio, incluindo o isolamento e a quarentena das populações, são os mais utilizados.
A grande questão tem sido sempre saber durante quanto tempo e qual o nível de isolamento necessário. Cada nova pandemia exige um acompanhamento rigoroso da sua evolução para tentar perceber até que ponto, a informação histórica acumulada pode ser útil.
A pandemia associada ao COVID-19 foi declarada muito recentemente (a 11 de março). Já conhecemos a estrutura do vírus (assim como das suas variantes genéticas) e algumas das principais vias de contaminação. Mas temos ainda muitas incógnitas. Quem são os que transmitem o vírus, mesmo quando assintomáticos, e durante quanto tempo? A que ritmo estará o vírus a sofrer mutações que o possam tornar mais ou menos virulento? Por que é que as crianças muito jovens apresentam sintomas menos graves? Qual o número de infetados abaixo do qual deixará de ser uma pandemia? Etc.
Neste momento exércitos inteiros de investigadores estão à procura de uma vacina. Mas é evidente que nenhuma vacina estará no mercado sem ter sido testada rigorosamente em ensaios clínicos. Será daqui a um ano? Seis meses? Dezoito meses? Três anos?
Enquanto esperamos pelos dados biológicos, enfrentamos grandes desafios psicológicos e sociológicos. A forma como cada um de nós encara um novo risco depende de muitos fatores. E a maneira como os governos lidam com esta multiplicidade de variáveis é crítica para o fortalecimento das instituições democráticas.
É fundamental percebermos que muitas decisões terão de ser tomadas na ausência de toda a informação desejada.
O isolamento total e completo de cada cidadão é praticamente impossível. Mas reduzir até ao limite desejável a possibilidade de contágio, principalmente dos mais vulneráveis, é o que todos desejamos. Como é também o desejo de todos os responsáveis de saúde. Só que os governos têm a responsabilidade adicional de, na medida do possível, manter os serviços essenciais do país a funcionar. Serviços esses que empregam trabalhadores nos mais diversos ramos da economia e que também devem ser protegidos.
E a chave está exatamente na palavra possível.
Se para cada um de nós, a noção do possível é muito variável, o importante é que possamos manter a nossa confiança na experiência técnica acumulada dos que ajudam a fundamentar as decisões políticas. Avaliar de forma continuada as medidas que devem ser tomadas para lidar com esta pandemia, a nível local, nacional e europeu ou internacional, é um trabalho complexo e exaustivo. Implica não só acompanhar a progressão do conhecimento sobre o vírus, como também perceber como é que populações inteiras lidam com a incerteza.
É minha convicção que Portugal se encontra numa situação privilegiada para lidar com este desafio. A aposta no conhecimento que temos feito ao longo das últimas três décadas, assim como o grande reforço dos últimos anos dado ao Serviço Nacional de Saúde, coloca-nos numa posição muito especial quando comparamos com muitos outros países. Apesar da uma literacia em saúde mediana, a maioria dos nossos cidadãos tem consciência que é através do conhecimento, em todos os domínios, que as soluções serão encontradas. Domínios esses que incluem as ciências naturais e sociais, mas também as humanidades, e onde a competência dos nossos profissionais é claramente reconhecida.
A apreensão que todos sentimos é normal. A pandemia não vai terminar nem amanhã, nem na semana que vem, nem no mês seguinte. Teremos de continuar a caminhar de forma atenta, sabendo de antemão que as estratégias podem ter de ser alteradas a qualquer momento. A coragem política demonstrada pelas decisões ponderadas e lúcidas tomadas, a todos os níveis, deve fortalecer a nossa confiança.
Para já, o principal desafio desta pandemia é o de uma cidadania responsável. Será que estamos todos dispostos a proteger a saúde dos outros como se fosse a nossa, mesmo se for necessário assumirmos riscos desconhecidos? Estamos todos envolvidos.
Artigo de Opinião publicado no Expresso a 23 de março de 2020