Toxicodependência não se combate com criminalização
Por Manuel Pizarro, Presidente da Federação Distrital do Porto do Partido Socialista.
O debate sobre o consumo de drogas e as suas consequências regressou ao espaço público, impulsionado pelo aparente ressurgimento do fenómeno nalgumas áreas da cidade do Porto.
Quase duas décadas depois da implementação da descriminalização do consumo, opção que Portugal assumiu no ano 2000, é altura de fazer um balanço dessa solução inovadora.
Ao longo da década de 90 do século XX, o tráfico e consumo de droga perturbaram o país de forma profunda. Milhares de jovens foram aprisionados numa espiral de consumo e pequena criminalidade, com profundo impacto nos próprios, nas suas famílias e nas comunidades. Certas zonas das cidades foram capturadas pela droga, transformando-se em guetos onde tudo era permitido.
O modelo de então baseava-se na criminalização, quer do tráfico, quer do consumo. Vivia-se numa contradição. No sistema de saúde, os consumidores eram considerados doentes, que precisavam de apoio para lidar com a sua dependência. No sistema de segurança e penal, eram classificados como criminosos, que precisavam de castigo. A criminalização limitava a ação dos serviços de saúde e de apoio social. O encarceramento de consumidores só agravava o problema. O afastamento dos serviços de saúde e a situação de absoluta marginalidade dos consumidores constituíram terreno propício para a propagação das hepatites B e C e do VIH.
Na transição para o século XXI, foi estabelecida e implementada uma nova Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga. Ela resultou de um grupo de trabalho multidisciplinar, presidido por Alexandre Quintanilha, que contou, entre outros, com a participação de Júlio Machado Vaz, Daniel Sampaio, Cândido Agra e João Goulão. Pessoas com conhecimento científico e com experiência no terreno.
A nova Estratégia procurava dar uma resposta global ao fenómeno da droga. Tratava da prevenção, da redução de riscos e minimização de danos, da dissuasão, do tratamento e da reinserção. Pedra de toque da nova política foi a descriminalização do consumo, que entrou em vigor em julho de 2001. O consumo de drogas ilícitas continuou a ser ilegal sendo, no entanto, considerado uma ofensa administrativa e não um crime.
Esta mudança, em conjunto com o desenvolvimento de respostas, quer ao nível do tratamento, quer da redução de riscos, modificou completamente o panorama da droga em Portugal. Foi possível aproximar os serviços de saúde de grande parte dos consumidores. Muitos deles aceitaram tratar-se ou, pelo menos, passaram a consumir opiáceos de substituição, facilitando a sua reintegração familiar e social. A incidência de doenças infeciosas decaiu de forma acentuada. As polícias concentraram-se na sua missão efetiva, de combate ao tráfico, com resultados recorde ao nível da apreensão de droga. A dimensão do problema diminuiu e a tranquilidade dos portugueses aumentou na mesma proporção.
O “caso português” é estudado em organizações internacionais e vários países adotaram políticas assumindo explicitamente inspirar-se na nossa estratégia de descriminalização.
Claro está que, em Portugal como em qualquer país, os problemas não foram todos resolvidos. Mais recentemente, nos anos da governação PSD/CDS, foi tomada a decisão de dissolver o instituto público que lidava com este assunto, o IDT, e infelizmente o Governo PS (ainda) não reverteu essa medida.
O fenómeno da droga necessita de atenção continuada e de abordagem especializada. Em algumas cidades persistiram espaços de tráfico e de consumo, zonas impenetráveis ao cidadão comum. No Porto, o Aleixo era a zona mais problemática e o seu desmantelamento sem adequado acompanhamento sanitário e social contribuiu muito para a crise de segurança que estamos a viver.
A solução para esta situação não é criminalizar o consumo. Não devemos confundir a luta contra a droga com o combate aos dependentes. É imperioso que cada instituição cumpra o seu papel. Precisamos de mais e melhor intervenção dos serviços sociais e de saúde do Estado e do Município. E precisamos que as polícias tenham mais recursos para combater o tráfico e para garantir a segurança pública.
Não podemos é regressar a um passado de criminalização pela criminalização, no Porto ou em qualquer outra parte do país.
Artigo de Opinião publicado no jornal Expresso a 11 de outubro de 2019