Timor, uma lição de democracia

Por Pedro Bacelar de Vasconcelos

Deputado Socialista, Professor de direito constitucional

 

De novo, Timor-Leste ofereceu uma lição ao Mundo e às nossas democracias antigas e sofisticadas do Ocidente. No termo de uma campanha eleitoral pacificamente disputada pelos oito candidatos ao cargo de presidente da República, o povo acorreu massivamente às mesas de voto e logo à primeira volta escolheu Francisco Guterres, também conhecido pelo nome de guerra Lu-Olo. O velho guerrilheiro, companheiro de luta de Xanana Gusmão e de Taur Matan Ruak na heroica resistência armada contra a ocupação indonésia, é o militante número um da Fretilin, presidiu à Assembleia Constituinte e conduziu os trabalhos parlamentares do primeiro Estado independente do século XXI, até ao fim da primeira legislatura, de 2002 a 2007.

Quando a Universidade Nacional de Timor Lorosa”e criou, em 2004, o curso de licenciatura em Direito, com o apoio das faculdades de Direito das universidades públicas portuguesas, Lu-Olo foi dos primeiros alunos a matricular-se e depois de concluídos os cinco anos da licenciatura quis prosseguir estudos e inscreveu-se no mestrado. Em abril de 2017, vai iniciar funções como o 4.º presidente da República Democrática de Timor-Leste, numa linha de sucessão inaugurada por Xanana Gusmão (2002/2007), continuada por Ramos Horta (2007/2012) e depois por Taur Matan Ruak, que agora termina o seu mandato.

Curiosamente, ao longo dos 15 anos de vida da democracia timorense, nenhum presidente cumpriu mais do que um único mandato, embora a Constituição admita uma só reeleição para este cargo que tem um perfil e um conteúdo funcional análogos ao da Constituição portuguesa. Todos os presidentes de Timor vieram da resistência. Três deles foram combatentes das Forças Armadas de Libertação e o outro – Prémio Nobel da Paz – foi o dirigente da frente externa e diplomática, antes e depois da independência. O jornalista António Sampaio, delegado da Lusa em Díli, divulgou uma imagem eloquente que sintetiza a singularidade desta inspiradora cordialidade democrática: um ex-presidente a fotografar o presidente cessante, no momento do voto: Ramos Horta e Taur Matan Ruak.

Assim, enquanto a Presidência da República continua a ser um lugar simbólico de moderação e de continuidade, permanecendo nas mãos da geração da resistência e dos fundadores da pátria independente, pelo contrário, o Executivo está a ser alvo de um processo de gradual transferência do poder da velha geração para a geração mais nova. Este movimento de renovação geracional foi desencadeado pelo próprio Xanana Gusmão que começou por dar o exemplo e deixou o cargo de primeiro-ministro para assumir a pasta ministerial da área do desenvolvimento, setor a que sempre dedicou o melhor das suas forças, lugar central da ação política e pressuposto do compromisso de construir um futuro melhor que concretize as ambiciosas esperanças de velhos e jovens, homens e mulheres de Timor-Leste.

É extraordinária a exemplaridade cívica dos eleitores timorenses, a seriedade com que exercem o poder soberano da escolha de quem os há de governar, o respeito, a solenidade com que executam os rituais democráticos. É surpreendente reconhecer como, apesar da crise grave que o jovem país atravessou nos anos de 2006/2007, com graves confrontos e dramáticos afloramentos de violência que chegaram a ameaçar a independência por que lutaram, se interiorizou tão profundamente a cultura democrática. Não há melhor explicação para tão inesperado fenómeno: no mais fundo da memória, os timorenses sabem que depois do inenarrável sofrimento dos 24 anos de feroz ocupação estrangeira, foi o gesto simples de depositar o boletim de voto numa urna, com uma cruz destemida a assinalar a opção pela liberdade o que lhes abriu, em definitivo, o processo de transição para a independência, no respeito pelo direito internacional.

 

Artigo publicado no Jornal de Notícias, março 2017

 

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