Liberdade de expressão?

Por Pedro Bacelar de Vasconcelos

Deputado Socialista, Professor de direito constitucional

 

A Porto Editora decidiu retirar do mercado dois livros de exercícios para o pré-escolar, um dedicado aos “rapazes” e outro às “meninas”. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) considerou que as duas publicações promoviam “estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens”. A Administração da empresa rejeitou que as publicações refletissem qualquer “perspetiva discriminatória ou preconceituosa” e assim ficamos sem perceber por que razão optaram por retirar os dois livros dos pontos de venda, aceitando uma “recomendação” da CIG que, explicitamente, consideravam injustificada. Entretanto, como parece terem chegado a acordo sobre a conveniência de a Comissão reunir com os autores dos livros para esclarecer a controvérsia, aguardemos que o diálogo faça luz sobre os preconceitos de género, a bem das nossas crianças.

O incidente inscreve-se no funcionamento normal de um Estado democrático. À Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género cabe zelar pelo respeito dos valores constitucionais que ditaram a sua criação – o princípio da igualdade e a proibição de todas as formas de discriminação. Por seu lado, os autores das publicações, envolvidos numa atividade de natureza didática dirigida a menores de idade, detêm responsabilidades cívicas e deontológicas que logicamente condicionam a sua liberdade de expressão e de criação artística. Contudo, certos ideólogos de Direita não perderam a oportunidade para denunciar mais um suposto atentado contra a liberdade de expressão.

O problema é que a utilização da liberdade de expressão como instrumento de propaganda da doutrina identitária de uma nova minoria, “branca, europeia e cristã”, faz o seu caminho na Europa e na América. Uma minoria que se diz oprimida e explorada e que se propõe restaurar privilégios históricos herdados do colonialismo e da escravatura. Curiosamente, imitam a narrativa multicultural que tanto deploravam no passado e desprezam os valores da universalidade e da igualdade perante a lei que as revoluções liberais tinham inscrito do centro do sistema político. Destaca-se nesta cruzada o presidente americano, Donald Trump, que recusou condenar as organizações racistas e xenófobas que promoveram uma manifestação violenta em Chalottesville de que resultou o assassínio de uma mulher, sob a alegação de que os terroristas do Ku Klux Klan e os supremacistas brancos que organizaram o protesto estavam, apenas, a exercer a sua liberdade de expressão!

É também à sombra da liberdade de expressão que a extrema-direita europeia promove a sua agenda de incitamento ao ódio racial e à intolerância religiosa, exige a expulsão dos imigrantes e reclama a restauração da pena de morte para combater os terroristas que, perversamente, identifica com os estrangeiros. É por isso inadmissível qualquer complacência perante a radicalização do discurso político que avança perigosamente de um e outro lado do Atlântico. O candidato do PSD à presidência da Câmara de Loures dá vazão aos seus preconceitos racistas contra os ciganos e até apela à reintrodução da pena de morte sem que a Direção do partido o desautorize e lhe retire o apoio. E o próprio presidente do partido insurgiu-se contra uma salvaguarda humanitária relativa à permanência de estrangeiros no país, inserida numa lei da Assembleia da República, cedendo a tentações populistas e à demagogia securitária.

A liberdade de expressão não legitima o insulto, a calúnia, a difamação. Tal como os outros direitos fundamentais, é um direito que tem como limite os direitos das outras pessoas e os valores essenciais partilhados pela comunidade e garantidos pela lei fundamental. A liberdade religiosa e de consciência, a liberdade de expressão, a reserva da intimidade privada, o princípio da igualdade e a proibição da discriminação, representam valores historicamente indissociáveis e configuram um perfil de dignidade humana de vocação universal. É “apenas” isto que está em causa.

Artigo publicado no Jornal de Notícias, agosto 2017

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