Por Pedro Bacelar de Vasconcelos
Deputado Socialista, Professor de direito constitucional
Afinal, tudo não passou de uma história comovente de afetos familiares… Eric Trump esclarece as metodologias que agora comandam o processo de tomada de decisões na Casa Branca. Foram as lágrimas da sua irmã Ivanka, perturbada pelo horror das imagens do ataque com armas químicas alegadamente perpetrado pelo Governo da Síria, que levaram Donald Trump a ordenar o lançamento não de um, nem dois, nem três, nem sequer de 30, mas, exatamente, de 59 mísseis de cruzeiro contra a base militar síria donde presumiu que o ataque tenha sido lançado… No “Jornal de Negócios” da passada sexta-feira, João Quadros insurgia-se contra Sean Spicer, o ministro da imprensa e diretor de comunicações de Donald Trump. O ministro, referindo-se a ao presidente sírio, Bashar al-Assad, proclamou em conferência de Imprensa que “nem Hitler desceu tão baixo ao ponto de usar armas químicas”. Uma associação judaica-americana, logo denunciou tais afirmações como um crime de “negação do Holocausto”. E João Quadros observava que afirmar que “nem Hitler chegou tão baixo”, “é uma frase difícil de encaixar (…) especialmente quando o assunto é genocídio com uso de armas químicas”. E sugere que “até o próprio Hitler ficaria chateado (…) que o transformassem num “monstro de segunda”!
O bombardeamento da base militar síria a pretexto da utilização de armas químicas foi apenas um ensaio para testar a reação dos europeus e melhorar a imagem presidencial profundamente desgastada junto da opinião pública americana. Satisfeito com o sucesso facilmente obtido, virou-se de seguida contra as montanhas do Afeganistão, repetindo a exibição de força mas com reforçado esplendor. O insuspeito ex-presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, não se deixou porém convencer e declarou: “Isto (…) é o abuso mais brutal e desumano do nosso país como campo experimental de novos e perigosos armamentos”.
Pensávamos, pelos vistos com infundado otimismo, que a “a mãe de todas as bombas” tinha ficado enterrada no solo mártir de Hiroxima e Nagasáqui, quando nenhum motivo de ordem militar – por qualquer modo! – justificava uma tão descomunal crueldade. Mas estávamos enganados: 72 anos depois, o cão raivoso de Washington lançou sobre o território do Afeganistão – ali, na vizinhança da Europa mas bem longe da estância presidencial de Mar-a-Lago, na Florida – a mais poderosa bomba não nuclear, nunca antes experimentada pelos EUA. O que Barack Obama fazia de modo constrangido e discreto, faz agora Donald Trump com gosto e espalhafato, indiferente ao substancial aumento de danos colaterais provocados pelas ações militares da aviação americana que ele tem ordenado desde que chegou ao poder, em África, na Síria, no Iémen, no Iraque e no Afeganistão. Bombardeamentos que foram responsáveis pelo drástico agravamento do número de vítimas civis – homens, mulheres e crianças -, segundo relatos independentes de instituições das Nações Unidas. Para tal trabalho, vem mesmo a calhar o nome por que é conhecido o ministro de Trump para a Defesa: chamam-lhe Jim “Cão raivoso” Mattis.
Nenhuma iniciativa militar unilateral contra outro Estado é admissível sem que haja uma prévia confirmação dos factos. Entre os “factos alternativos” invocados pelos EUA – matéria em que a nova Administração americana se tem revelado pródiga – e a versão de Assad – que pretende lançar as culpas sobre os rebeldes – impunha-se a realização de um inquérito independente das Nações Unidas. Exigia-se uma reação que prometesse um renovado empenhamento de todas as partes no processo de paz. Sem isso, lamentavelmente, estamos perante a consumação de mais uma grave violação do direito internacional. A “compreensão” subserviente que os governos europeus prontamente concederam a Donald Trump apenas lhe confere a oportunidade de prosseguir no caminho da violência gratuita e da provocação internacional sistemática. Uma concessão desastrosa para a Europa. A promessa cruel do horror da guerra que continuará a flagelar o povo sírio.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, abril 2017