Covid-19 – Surto de solidariedade?
Por Pedro Bacelar de Vasconcelos, Deputado e Professor de Direito Constitucional
Perante a ameaça da pandemia, a extrema-direita reage de forma coerente, responsabilizando os estrangeiros, os grupos minoritários e, caso esteja no poder – como no Brasil, nos EUA ou na Grã-Bretanha -, adotando uma atitude “negacionista”, à espera de que o chamado “efeito de imunização comunitário” – “herd immunity” – venha a surgir a partir do crescimento do número de infetados que sobrevivam à doença.
Ou seja, justificam a inação e encobrem a negligência com que cuidam dos serviços públicos de saúde com a expectativa de que a ampla difusão do vírus, “naturalmente”, venha a criar na comunidade mecanismos biológicos de defesa comunitária do contágio! Em sentido diverso, onde as autoridades públicas tentam travar a propagação do vírus e procuram garantir que os serviços de saúde consigam responder ao afluxo extraordinário de infetados, aí, alimentada pelo pânico que o populismo antidemocrático difunde, surge a exigência da generalização de medidas sumárias de coação e repressão policial, a criminalização dos infratores e a supressão das liberdades. Em ambos os casos, o desprezo pela vida e pela dignidade humana degrada a confiança fundadora da convivência tolerante, justa e civilizada própria das democracias constitucionais.
O modelo egoísta de desperdício e consumismo inventado pelas sociedades mais ricas do “mercado livre” na era da Guerra Fria encontra-se em crise desde o fim dos anos sessenta do século passado! A procura de outros modos de vida marcou o nascimento de novos movimentos sociais que reclamam a reconciliação com a natureza, a paz entre os povos e mais solidariedade humana. Estas reivindicações não encontraram até hoje resposta satisfatória das forças políticas, de que se esperava mais sensibilidade e ousadia e, por isso, cresceu perigosamente o populismo autoritário. É nesta encruzilhada que surge o Covid-19. Os nacionalismos apócrifos de hoje estão cientes de que o declínio da soberania estatal é irreversível, usando-os como tópico oportunista para denegrir a ordem democrática, as suas aquisições sociais e civilizacionais. Embora o regresso aos modelos fascistas do século passado seja improvável, novos modelos autoritários, com idêntica ferocidade, podem renascer e são ensaiados em alguns lugares. A resignação cínica e impiedosa de Boris Johnson perante a catástrofe gerou uma vasta rede de voluntários no Reino Unido para dar assistência àqueles que pela sua idade, saúde precária ou pobreza se encontram numa situação de grande vulnerabilidade – as primeiras vítimas fatais do surto epidémico. O desfecho desta pandemia vai indicar o rumo das nossas democracias. A defesa do direito à saúde contra a obsessão do lucro na indústria farmacêutica e nos “tweets” de Donald Trump ecoa pela Austrália, a China, a Europa: só a solidariedade nos pode salvar.
Artigo de Opinião publicado no Jornal de Notícias a 19 de março de 2020