Até quando?

Por Pedro Bacelar de Vasconcelos

Deputado Socialista, Professor de direito constitucional

 

A tragédia dos fogos do verão veio pôr a nu a urgência de algumas reformas essenciais que foram sendo abandonadas, décadas a fio, pelos piores motivos: por preguiça ou miopia, pelo receio de confronto com os interesses instalados, por falta de tempo para a reflexão e o diálogo, por falta da vontade de construir consensos, por não se esperar – enfim! – a obtenção de resultados visíveis e compensadores no curto prazo. Desta forma, por incúria, mesquinhez ou ignorância, perdeu-se a oportunidade de realizar, por exemplo, as grandes reformas na agricultura e nas pescas. Mas é muito longo o rol das omissões inexplicáveis que se tornaram flagrantes após a adesão à Comunidade Económica Europeia e que envolvem todas as forças políticas que governaram o país, juntamente com os responsáveis de instituições públicas que se renderam às facilidades dos fundos comunitários e dos agentes privados que se acomodaram ou aproveitaram dos seus alçapões. O “país de serviços e turismo” tornou-se um desígnio absoluto… e uma armadilha fatal! E assim foram liquidadas sem dramas nem remorsos, a frota pesqueira, a agricultura e a floresta. Desperdiçaram-se os saberes de artesãos competentes, desfizeram-se laços de vizinhança e redes de cooperação local, e despovoaram-se as aldeias que tinham conseguido resistir às vagas de emigração caótica nos anos 60. Cresceram os subúrbios, e as autoestradas atravessam hoje territórios imensos infestados de pinheiro e eucalipto. É justo reconhecer que o deserto se antecipou às alterações climáticas e que o fogo ceifou, por fim, a sua seara.

A tragédia dos fogos criou um amplo consenso quanto às reformas que não podemos continuar a adiar. Desde logo, exige-se um plano de reordenamento florestal que não permita a repetição dos cenários apocalípticos do verão passado e que, dentro de uma década, nos possa devolver uma floresta adequada às necessidades humanas do nosso tempo e aos condicionalismos da nossa geografia. O programa de modernização da prevenção e combate aos incêndios terá de demonstrar a sua validade e eficiência, já no próximo verão! E porque são as populações residentes que desempenham o papel decisivo na proteção do seu próprio território, reclama-se também um maior atrevimento no reforço das competências das freguesias e dos municípios e uma adequada requalificação da democracia local. O interior do país começa na periferia das capitais de distrito. As cidades ainda conseguem reter parte do êxodo dos territórios circundantes mas o centralismo atávico que tem marcado a II República continua a capitalizar todos os surtos migratórios do espaço nacional. Cerca de três centenas de municípios estão condenados a procurar solução para problemas correntes da gestão local junto de órgãos desconcentrados da Administração Pública que, segundo a lógica da hierarquia administrativa, os rejeitam ou reencaminham para a instância central de decisão política – o Governo! Os eleitos locais não dispõem de interlocutores com adequada responsabilidade política e legitimidade democrática, competentes para o desempenho de funções de coordenação e planeamento no âmbito regional.

Tudo o que nos remete, enfim, para uma questão de escala territorial, de subsidiariedade e de controlo democrático que é preciso retomar. Referimo-nos ao imperativo constitucional da criação das regiões administrativas cuja concretização vem sendo sistematicamente adiada e iludida desde 1976 com recurso a exigências desmesuradas, maliciosamente inscritas no texto da Constituição, graças a múltiplas cumplicidades. O fracasso do referendo de 1998, com as polémicas que suscitou em torno das oito regiões administrativas que pretendia instituir, afastou a regionalização do debate político nos últimos 20 anos. É tempo de o retomar. Não faz sentido outra escala que não seja o âmbito territorial das atuais comissões de coordenação e desenvolvimento regional, porventura, com os ajustamentos que as populações limítrofes entenderem convenientes. Para impedir o avanço da desertificação, são necessários centros de decisão política com dimensão adequada para mobilizar as populações, cuidar do território, conciliar pretensões divergentes, coordenar a ação, planear, desenvolver… e prestar contas perante os seus eleitores!

Artigo publicado no Jornal de Notícias, novembro 2017

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